Bem, que engraçado é a comunidade de doces de geladeira, não é?
Pense bem: goiabadas, quindins, tortinhas de morango, em entrelace cordial com os doces de, digamos assim, menos respeito, como leites condençados e coberturas de chocolate; estes, todos utensílios para um doce de maior pompa; e que, apesar das desavenças, se respeitavam e se aturavam.
Mas em um dia, domingo, para contemplar maior exatidão a você, leitor, houve a desgraça: o limão, em sua sesta habitual da tarde, foi surrupiado e impiedosamente espremido no leite, o Senhor da Geladeira. Coalhado e sem forças, o Leite gritou em seu socorro.
Os ovos choraram claras em neve; a margarina ficou rançosa, espavorida pelos lácteos gemidos; os morangos mofaram, ali mesmo na caixa, herméticos e apertados; o arroz grudou na penela; e não me atrevo a pautar o acontecido com queijo: desgraça.
Quem houvera, daquela forma impiedosa e violenta, atentado contra o pudor do Longa Vida - que, em agonizantes delírios, lembrava com tristeza o dia em que fora retirado da caixa e fervido - , e produzido tão horroroso iogurte?
Os doces de grande imponência perderam sua doçura natural e culparam a réles, os doces subalternos, pelo coágulo branco que se tornou o Leite, querido de todos.
Como forma de imposição, os doces menores levantaram placas em desesperado protesto; gritaram frases de efeito e, até mesmo, cogitaram revolução, como ato alucinado contra a opressão a que estavam sendo submetidos.
Sem mais forças, os doces opressos decidiram que era hora de partir: o ambiente esquentara.
A Geladeira, casa querida, foi deixada logo pela manhã do dia seguinte. Suados e a ponto de perder a validade, encontraram abrigo ao lado de colossais camadas de gelo, no Freezer, a metros de distância do Refrigerador.
Na Geladeira, o leite se encontrava em bom estado, apesar de tudo. Sobrevivera. E, com poucas forças, relatou o acontecido: O limão, dormindo, viera rolando, sonâmbulo, e, num ato de auto-flagelo, espremera-se, chovendo na cabeça do Leite. O limão, já seco e sem caldo, foi desculpado, e a culpa insuflou os poros de todos naquele frio ambiente que se tornara aquela morada, após o ato criminoso que cometeram todos, culpando os doces de baixo escalão; até as verduras choraram, suando a gaveta em que descançavam.
Os respeitáveis doces, já não tão respeitados, sairam à procura de seus colegas, mas não os acharam, e apodreceram no inóspito calor em que estavam. Uma semana depois, todos foram comidos, e Leite, infelizmente, jogado fora, agora, desconjurando com mais afinco ainda o fatídico dia em que fora retirado de sua caixa.
E quanto aos doces congelados? Estes foram encontrados e devolvidos ao Refrigeirador, agora, aclamados como heróis, que lutaram por uma causa; que sofreram atrocidades e não se rebaixaram àqueles que não os respeitavam.
Foram eternamente lembrados.
Bem, que engraçado é a comunidade de doces de geladeira, não é?
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